terça-feira, 21 de setembro de 2010

A Lua que não dei

Autor: Cecílio Elias Netto


Compreendo os pais - e me encanto com eles - que
desejariam dar o mundo de presente aos filhos. E, no
entanto, abomino aqueles que, a cada fim de semana,
 dãotudo o que filhos lhes pedem nos shoppings onde exercitam
arremedos de paternidade.
E não há paradoxo nisso. Dar o mundo é sentir-se um pouco
como Deus, que é essa a condição de um pai. Dar
futilidades como barganha de amor é, penso eu, renunciar
ao sagrado.
Volto a narrar, por me parecer apropriado à crônica, o que
me aconteceu ao ser pai pela primeira vez. Lá se vão,
pois, 45 anos. Deslumbrado de paixão, eu olhava a menina
no berço, via-a sugando os seios da mãe, esperneando na
banheira, dormindo como anjo de carne. E, então, eu me
prometia, prometendo-lhe: 'Dar-lhe-ei o mundo, meu amor.'
E não lho dei. E foi o que me salvou do egoísmo, da tola
pretensão e da estupidez de confundir valores materiais
com morais e espirituais.
Não dei o mundo à minha filha, mas ela quis a Lua. E não
me esqueço de como ela pediu, a Lua, há anos já tão
distantes. Eu a carregava nos braços, pequenina e apenas
balbuciante, andando na calçada de nosso quarteirão, em
tempos mais amenos, quando as pessoas conversavam às
portas das casas. Com ela junto ao peito, sentia-me o mais
feliz homem do mundo, andando, cantarolando cantigas de
ninar em plena calçada. Pois é a plenitude da felicidade
um homem jovem poder carregar um filho como se acariciando
as próprias entranhas. Minha filha era eu e eu era ela. Um
pai é, sim, um pequeno Deus, o criador. E seu filho, a
criatura bem amada.
E foi, então, que conheci a impotência e os limites
humanos. Pois a filhinha - a quem eu prometera o mundo -
ergueu os bracinhos para o alto e começou a quase gritar,
assanhada, deslumbrada: 'Dá, dá, dá...' Ela descobrira a
Lua e a queria para si, como ursinho de pelúcia, uma
luminosa bola de brincar.
Diante da magia do céu enfeitado de estrelas e de luar,
minha filha me pediu a Lua e eu não lhe pude dar. A
certeza de meus limites permitiu, porém, criar um pacto
entre pai e filhos: se eles quisessem o impossível, fossem
em busca dele. Eu lhes dera a vida, asas de voar,
diretrizes, crença no amor e, portanto, estímulo aos
grandes sonhos.
E o sonho da primogênita começou a acontecer, num
simbolismo que, ainda hoje, me amolece o coração. Pois,
ainda adolescente, lá se foi ela embora, querendo estudar
no Exterior. Vi-a embarcar, a alma sangrando-me de saudade,
a voz profética de Kalil Gibran em sussurros de consolo:
'Vossos filhos não são vossos filhos. São os filhos e as
filhas da ânsia da vida por si mesma. Eles vêm através de
vós, mas não de vós. E embora vivam convosco, não vos
pertencem. (...) Vós sois os arcos dos quais vossos filhos
são arremessados como flechas vivas.'
Foi o que vivi, quando o avião decolou, minha criança a
bordo. No céu, havia uma Lua enorme, imensa.
A certeza da separação foi dilacerante.
Minha filha fora buscar a Lua que eu não lhe dera. E eu
precisava conviver com a coerência do que transmitira aos
filhos: 'O lar não é o lugar de se ficar, mas para onde
voltar. 'Que os filhos sejam preparados para irem-se, com
a certeza de ter para onde voltar quando o cansaço, a
derrota ou o desânimo inevitáveis lhes machucarem a alma.
Ao ver o avião, como num filme de Spielberg, sombrear a
Lua, levando-me a filha querida, o salgado das lágrimas se
transformou em doçura de conforto com Kalil Gibran: como
pai, não dando o mundo nem Lua aos filhos, me senti
arqueiro e arco, arremessando a flecha viva em direção ao
mistério.
Ora, mesmo sendo avós, temos, sim e ainda, filhos a criar,
pois família é uma tribo em construção permanente.
Pais envelhecem, filhos crescem, dão-nos netos e isso é a
construção, o centro do mundo onde a obra da criação se
renova sem nunca completar-se.
De guerreiros que foram, pais se tornam pajés. E mães,
curandeiras de alma e de corpo. É quando a tribo se
fortalece com conselheiros, sábios que conhecem os
mistérios da grande arquitetura familiar, com régua,
esquadro, compasso e fio de prumo. E com palmatória moral
para ensinar o óbvio: se o dever premia, o erro cobra.
Escrevo, pois, de angústias, acho que angústias de pajé,
de índio velho. A nossa construção está ruindo, pois feita
em areia movediça. É minúsculo o mundo que pais querem dar
aos filhos: o dos shoppings. E não há mais crianças e
adolescentes desejando a Lua como brinquedo ou como
conquista. Sem sonhos, os tetos são baixos e o infinito
pode ser comprado em lojas. Sem sonhos, não há necessidade
de arqueiros arremessando flechas vivas. Na construção
familiar, temos erguido paredes. Mas, dentro delas, haverá
gente de verdade?



2 comentários:

  1. Que lindo e tocante texto!

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  2. Oi!
    Estou aqui debruçada em lágrimas.
    Remeti a todos amigos que tem filhos. Belo exercício de reflexão...
    bjs
    Tia Jú
    (mãe da Carol)

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